sábado, 3 de novembro de 2007

Capítulo I- A Chance parte III

Um estampido oco o fez voltar à sua realidade. Apagou o cigarro esfregando a ponta dele na parede úmida e arregalou os olhos. Em seguida outro estampido. Tiros na rua deserta. Correu para a janela e ficou a brechar por entre os buracos na madeira. Manuel grunhiu do lado dele e virou-se para o canto da parede encolhendo-se em forma fetal. Como ele poderia dormir com sons como aqueles largados no ar? A guerra poderia ter chegado até eles, afinal. Gustavo estava com o coração quase saindo pela boca. Muitas coisas se passavam pela sua cabeça. Ficou parado sem fazer movimentos bruscos e sem respirar pesadamente. As ruas eram pouco iluminadas e havia um poste apagado à sua direita. Gustavo podia jurar que aquele poste estava aceso mais cedo. Mas o tempo passou e nada mais se ouviu. Um cachorro latia longe e esse foi o único som que escutou até amanhecer.

Quando Manuel acordou, viu Gustavo sentado na cama fumando um cigarro. Estava com uma aparência horrível. Parecia que tinha passado a noite acordado. Havia várias bitucas de cigarro pelo chão. Gustavo olhava perdido para algum lugar e entre uma tragada e outra, tossia um pouco. Manuel levanta-se meu arquejado. Caminhou pelo pequeno quarto e senta do lado de Gustavo:

- E aí, companheiro? Noite difícil?
Demora um pouco para que Gustavo responda a pergunta. Dá mais uma ou duas tragadas no cigarro. Solta a fumaça pelas narinas, coça a nuca e volta a fumar. Depois se volta para Manuel.
- É.
- Ih, rapaz. Se acostuma. A gente tá indo pra Cabul, cara. Aquilo deve tá um inferno- diz Manuel levantando-se e indo até sua bolsa do lado da sua cama.
- É- responde Gustavo com um olhar distante- deve de tá mesmo.
- Vamos descer, tomar nosso café e irmos pro ponto de encontro ao norte daqui. De lá, cara... vai ser chão, meu camarada.

Gustavo sacode a cabeça para o lado e para o outro como que querendo acordar. Olha para o cigarro e o joga junto com as bitucas no chão e em seguida pisa nele. Desceram e tomaram seu café com naan, um pão de origem indiana levedado e espalmado cozido em forno. Pegaram suas coisas e seguiram até uma rua não muito longe, onde havia outros repórteres. Não muitos, na verdade. Talvez não existissem loucos o suficiente para entrar numa zona de guerra quando muitos querem na verdade sair. Todos estavam esperando um caminhão que os levaria até Kandahâr para que outro caminhão, este maior, os levasse até Ghazni, que é o mais próximo que os motorista afegãos querem chegar de Cabul. De lá, terão de procurar motoristas que estejam dispostos a ir até a capital do país em troca de uma substancial quantia em dinheiro, o que não é nada difícil de se conseguir. Gustavo acendeu outro cigarro. Ficou olhando em volta. Havia repórteres da Inglaterra, Estados Unidos, França, Japão. Todos em busca de notícias frescas. E todos dispostos a ir além por ela. Manuel logo se enturmou com dois repórteres do The Independent. Eles riam muito e faziam sinais com as mãos como que imitando armas em punho. Gustavo desviou o olhar quando viu uma família passando do outro lado da rua, quase dobrando uma esquina. Havia um garoto de aproximadamente doze anos com roupas maltrapilhas carregando uma sacola de pano debaixo do braço. Junto a ele, um homem alto e magro, com uma barba negra como carvão que também carregava trouxas nas duas mãos. E uma mulher gordinha e baixa vestida com tecidos grossos, encobrindo todo o seu corpo. Eles andavam rapidamente e isso nem teria chamado a atenção dele se um jipe do exército paquistanês não tivesse emparelhado junto a eles. De longe Gustavo ficou observando curioso. Logos os demais repórteres também se juntaram a ele. Alguns começaram a tirar fotos.

Os soldados gritavam com a família e davam tapas na cara do homem barbado que se ajoelhou e ficou jogando o corpo para frente e para trás com os braços erguidos. O soldado o levantou e começou a empurrá-lo para o jipe gritando muito. A mulher e o garoto também foram. Um soldado notou os homens da imprensa e então foi na direção deles. Em seguida um outro soldado veio logo atrás segurando uma pistola automática. Alguns dos presentes se entreolharam, mas ninguém fez menção a correr ou coisa assim. Eram repórteres. Não estariam malucos a ponto de mexer com eles e correr o risco de gerar um incidente diplomático. Ele chegou perto deles e com o indicador da mão direita começou a falar em urdu, idioma oficial do Paquistão. Nenhum dos repórteres falava aquilo, que mais parecia um disco arranhado de trás pra frente. Até que o outro soldado se aproximou com um ar sério e esse falava inglês, que também é a segunda língua oficial daquela terra. Explicou que aquela família era de refugiados afegãos e que iria levá-los a um campo de refugiados não muito longe dali. Pediu desculpa por alguma coisa e foi embora. Gustavo não conseguia tirar o olho daquela família. O garoto parecia perdido em meio ao mundo grande. Olhava para os pais e para o vazio o tempo todo. Gustavo respirou fundo e acendeu outro cigarro. Escorou-se na parede numa sombra, procurando esfriar o corpo, mas o calor ainda era um horror e se pegou a fitar o vazio e a lembrar-se de sua infância. De quando teve de sair do Rio de Janeiro para ir morar em São Paulo. Que deixou amigos para trás e uma pessoa especial. Ele tinha quinze anos nessa época.

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